Leia abaixo, na íntegra, a carta aberta sobre o atual contexto de assistência em saúde mental no município de Belo Horizonte e Estado de Minas Gerais publicada pela Comissão de Direito à Saúde Mental da OAB/MG:

A Ordem dos Advogados do Brasil tem como função a defesa da Constituição, da ordem jurídica do Estado Democrático de Direito, dos direitos humanos e da justiça social. Não é recente o interesse da nossa instituição pelo Direito à Saúde Mental, merecendo destaque o protagonismo da entidade ao enfileirar-se na Luta Antimanicomial dos anos 90, dando importante contribuição ao advento da Lei n° 10.216/2001. Naquele momento, as preocupações se davam em dar uma atenção diferenciada às pessoas acometidas por transtornos mentais e os tratamentos médicos e jurídicos a elas dispensados.

Em 2019, a OAB de Minas Gerais, através da criação de sua vanguardista Comissão de Direito à Saúde Mental, deu mais um importante passo na direção do necessário reconhecimento da importância da saúde mental, voltando olhares à quase invisibilidade dos sofrimentos que afetam, cada vez mais, um enorme contingente de pessoas, que merecem especial atenção de diversos setores da sociedade, inclusive, e, principalmente, dos operadores do Direito.

Desde o início dos trabalhos da Comissão, acompanhamos o aumento significativo dos casos de adoecimentos mentais e suicídios, cada vez mais recorrentes em nossa sociedade, o que tem se agravado no contexto da pandemia, e que consiste em uma preocupação mundial dos gestores de saúde. Lamentavelmente as estatísticas estão cada vez mais próximas de todos nós.

Na contramão da realidade, constatamos por parte dos gestores de saúde estaduais (Minas Gerais) e municipais (Belo Horizonte) uma grave negligência com o problema, desde o fechamento do Hospital Galba Velloso em março de 2020, e das restrições impostas pelo poder público para o atendimento dos cidadãos belorizontinos no Hospital Raul Soares, da rede estadual.

Além disso, acompanhamos as recentes denúncias feitas por diversos profissionais de saúde (médicos, enfermeiros e farmacêuticos) e também por familiares de pacientes sobre a precarização do serviço público de saúde mental prestado nos Centros de Referência em Saúde Mental – CERSAMS – de Belo Horizonte, que não contam com atendimento médico em horário integral, nem com estrutura adequada para o atendimento dos quadros mais graves e dos pacientes em crises agudas.

Esta situação, inclusive, motivou, o anúncio de uma interdição ética, pelo Conselho Regional de Medicina de Minas Gerais – CRM/MG, já que os médicos que atuam nos CERSAMS não possuem condições de oferecer o tratamento adequado aos pacientes, fato que vem sendo noticiado pelos principais órgãos de comunicação. O Conselho Regional de Enfermagem de Minas Gerais – Coren/MG, também realizou fiscalizações nas unidades, quando constatou a inexistência de enfermeiros nos finais de semana e plantões noturnos para supervisionar as equipes de nível médio, o que resultou uma Ação Civil Pública, recentemente julgada procedente em primeira instância, determinando a reserva na lei orçamentária de dotação suficiente para a contratação de enfermeiros em quantidade suficiente.

São graves os relatos de abandono de tratamento, de falta de leitos especializados, de administração de medicamentos sem o acompanhamento médico e até mesmo de uso de entorpecentes dentro das unidades, além de atitudes de violência praticadas pelos pacientes contra si mesmos e terceiros, que muitas vezes são tratadas como crimes e que se revelam no aumento de pacientes acometidos por transtornos mentais na população carcerária. Além disso, é visível o aumento da população de rua na cidade, sendo grande parte formada por pacientes e usuários de drogas que não recebem tratamento adequado.

Reconhecemos a importância dos Centros de Atenção Psicossocial – CAPS, que incluem os CERSAMS (CAPS 3) na Rede de Atenção Psicossocial, bem como o sucesso dessa metodologia no tratamento inclusivo e humanizado de diversos pacientes.

Entretanto, ressalvamos que o atendimento prestado apenas nos CAPS, sobretudo quando não contam com o necessário acompanhamento médico, não garante ao cidadão o pleno direito ao tratamento. Não se trata meramente de um parecer, mas de uma interpretação literal da Lei n° 10.216/2001, que em seu art. 2°, parágrafo único, inciso I, estabelece o seguinte:

Art. 2º: (…)

Parágrafo único: São direitos da pessoa portadora de transtorno mental:

I – ter acesso ao melhor tratamento do sistema de saúde, consentâneo às suas necessidades.

Além da literalidade do dispositivo mencionado, toda a redação da Lei n° 10.216/2001 é bastante clara no sentido de que o tratamento nos CAPS (com acompanhamento médico) deve ser priorizado, sem, contudo, deixar de reconhecer que os ambulatórios e hospitais são unidades de tratamento complementares e, portanto, devem coexistir dentro da Rede, proporcionando ao paciente o melhor tratamento e condições para o seu diagnóstico, cuja definição, frisa-se, é prerrogativa médica.

Na mesma linha de intelecção, a Portaria nº 3.588/2017 do Ministério da Saúde, aprovada em Comissão de Intergestores Tripartite (CIT) também é clara ao definir a obrigatoriedade das equipes multiprofissionais de atenção especializada em Saúde Mental, das Unidades de Referência Especializada em Hospitais Gerais, além dos Hospitais Psiquiátricos Especializados.

Utilizando um raciocínio mais simples, sugerimos a comparação com o serviço de saúde geral, que oferece à população Centros de Saúde, Unidades de Pronto Atendimento e Hospitais, cada um com sua importância dentro do Sistema, e todos com a presença de médicos conduzindo o diagnóstico e prescrevendo o tratamento adequado.

O que nos preocupa sobremaneira é que por trás desta política de DESASSISTÊNCIA, reside um discurso radical e falacioso fundamentado na luta antimanicomial, com o que não podemos compactuar. A luta antimanicomial foi um movimento importantíssimo que preconizou a humanização dos tratamentos, mas jamais a sua negativa e precarização. A MAIOR PRISÃO DE UM PACIENTE PORTADOR DE QUALQUER TRANSTORNO MENTAL É A PRÓPRIA DOENÇA, POIS NÃO EXISTE LIBERDADE SEM O PLENO EXERCÍCIO DA SAÚDE MENTAL.

Neste sentido, a Comissão de Direito à Saúde Mental da OAB/MG clama aos gestores públicos a revisão das omissões e condutas praticadas no Sistema, proporcionando aos cidadãos a assistência, com respeito à autonomia dos sujeitos e manutenção de seus vínculos, mas também protegendo a sua saúde, garantindo diagnósticos e tratamentos, prevenindo os agravos e reduzindo danos.

Por fim, aproveitamos o ensejo para manifestar nossa disponibilidade na construção de diálogos e tratativas de soluções, inclusive no tocante à fiscalização dos direitos dos pacientes, já que o momento requer a união de forças e saberes para proporcionar a melhor política de saúde mental para nossa sociedade, condição para materialização do direito à vida e à dignidade humana.

Belo Horizonte, 10 de agosto de 2021.

LUCIANA CHAMONE GARCIA

Presidente da Comissão de Direito à Saúde Mental da OAB/MG